A obra literária Ensaio sobre a cegueira, de José Saramago, apresenta a narrativa de uma sociedade "cega" no que tange aos problemas sociais. De maneira análoga, fora da ficção, a crítica do autor pode ser verificada na atual conjuntura brasileira, haja vista que muitos indivíduos não enxergam os diversos desafios para a valorização da herança africana no país. Dessa forma, percebe-se a configuração de um grave obstáculo, que se enraíza tanto pela inércia estatal quanto pela falta de informação. Logo, essas causas precisam ser analisadas e combatidas.
Diante desse cenário, é notório que a débil ação do poder público agrava o revés supracitado. Sob essa ótica, é oportuno rememorar o pensamento do ilustre filósofo Thomas Hobbes, que afirma ser responsabilidade do Estado assegurar o bem-estar dos cidadãos. Entretanto, fica evidente que o território verde-amarelo, lamentavelmente, não é um exemplo desse ideal, visto que os órgãos governamentais nunca se preocuparam em preservar o legado da população negra. Prova disso é a ausência de documentos que indicam o lugar de origem das pessoas escravizadas durante o período colonial, pois todos esses registros civis foram incinerados durante o século XX, com o intuito de negar o passado escravista. Consequentemente, tal escassez dificulta que esse grupo tenha acesso à própria cultura natal, afetando, por sua vez, o conhecimento sobre a sua identidade de uma forma mais ampla. Assim, é imperativo que os agentes competentes modifiquem a sua postura para que o bem-estar defendido por Hobbes seja desfrutado por essa comunidade, na prática.
Ademais, vale ressaltar também que o desconhecimento representa outro suscitador do impasse relacionado à desvalorização da herança africana na nação brasileira. Nesse sentido, consoante o sociólogo Zygmunt Bauman, algumas instituições deixaram de exercer as suas funções sociais, operando como "zumbis". Paralelo a isso, essa perspectiva pode ser associada às escolas, que, embora sejam influentes na formação dos sujeitos, parecem ter esquecido o seu papel, uma vez que tais centros educacionais, influenciados pela visão eurocentrista, desprezam a importância de retratar as figuras pretas nacionais, como Zumbi dos Palmares, e a sua relevância para a história do país. Por conseguinte, essa abordagem ultrapassada impede que as crianças negras, principalmente, reconheçam o papel e o símbolo histórico dos heróis de origem africana, perpetuando, dessa maneira, o ideário do herói branco. Com isso, é nítida a urgência da atuação ativa das redes de ensino para minimizar o infortúnio.
Portanto, vistos os fatores que afligem negativamente a valorização da herança africana, medidas são essenciais para combatê-los. Para isso, o Ministério da Cultura, responsável pelo repertório histórico nacional, deve buscar elementos identitários da população negra e prestigiá-los em museus. Tal ação deve ser feita por meio de um projeto a ser entregue à Câmara dos Deputados, prevendo recursos fundamentais para garantir o cumprimento dessa procura. Desse modo, a inoperância estatal será enfrentada e a cultura negra será explorada. Além disso, cabe ao Ministério da Educação ampliar a divulgação sobre os protagonistas negros nos colégios, por intermédio de alterações no material didático, visando prestigiar os símbolos nacionais. Desse jeito, o Brasil poderá transcender a realidade descrita por Saramago e sair do estado de "cegueira" social.